Resumo: Pretende-se demonstrar neste trabalho a importância de uma vinculação saudável e bem sucedida na primeira infância para um desenvolvimento harmonioso e saudável do indivíduo. A apresentação cronológica das perspectivas de diferentes autores sobre a relevância e a variedade dos contextos em que ocorre o desenvolvimento serve de enquadramento para o estabelecimento da relação com o processo de vinculação, o qual se revelou, pelos estudos efetuados e à frente referidos, uma necessidade inata do ser humano.
Palavras-chave: Freud, Piaget, Vigotsky, Bronfenbrenner, desenvolvimento, contextos, socialização, vinculação, Bowlby, Harlow, Lorenz, Spitz, Ainsworth
Desde o séc. XVII, quando o filósofo inglês John Locke defendia que a criança era uma “tábua rasa” sobre a qual o meio exercia a sua influência (Tavares, Pereira, Gomes, Monteiro & Gomes, 2007), vários autores se debruçaram sobre os factores condicionantes do desenvolvimento humano.
Ao debruçarmo-nos sobre os estudos realizados, verificamos que as perspectivas dos autores evoluíram em vários sentidos. Por um lado, encontramos Sigmund Freud que considerou o desenvolvimento humano como decorrente da evolução psicossexual do indivíduo, considerando esse desenvolvimento um processo individual e interno, não colocando enfoque na influência do meio e valorizando a importância da zona erógena do sujeito em cada fase do desenvolvimento (Tavares et al, 2007); noutro sentido, Jean Piaget, apresenta a interação com o meio envolvente como um factor influenciador do desenvolvimento cognitivo do indivíduo, sendo este parte construtora e ativa do seu individualismo ao experienciar mudanças nas estruturas do conhecimento através de um processo de adaptação que integra dois mecanismos: assimilação, que se refere à absorção do sujeito das influências do meio e das suas vivências, estimulando o segundo mecanismo, a acomodação, readaptação à nova informação recebida, ajustando-se ao meio. Nesta dinâmica entre assimilação e acomodação, verifica-se um afastamento entre a realidade e a percepção que o indivíduo tem da mesma, que é colmatado por um processo cognitivo de auto-regulação – equilibração, permitindo alcançar estados de adaptação mais estáveis, através de pensamentos mais complexos (ibidem).
Por sua vez, Vigotsky apresenta uma abordagem histórico-cultural ao considerar que o desenvolvimento da criança se faz, sobretudo, pela internalização de símbolos e signos culturais inerentes ao contexto socio-historico-cultural em que está inserida, adquiridos através da interação com adultos significativos ou com outras crianças mais desenvolvidas, logo, mais competentes (Yudina in Silva, 2007). Vigotsky introduz o conceito de zona de desenvolvimento próximo, referindo-se à diferença existente entre o que a criança consegue fazer sozinha e o que consegue fazer com ajuda (ibidem e Oers, in Silva, 2007). Ao obter ajuda para realizar uma tarefa, a criança apropria-se de competências que lhe permitirão realizar tarefas cada vez mais complexas, desenvolvendo sucessivamente novas competências. Neste sentido, o investigador destaca as funções das atividades conjuntas e da interação como fundamentais para que a criança se desenvolva cognitivamente (Stranberg, in Silva, 2007).
Poderemos aqui, talvez, transpor esta abordagem para o conceito de desenvolvimento ao longo da vida, pois, assim como à criança, novas experiências permitem também ao adulto adquirir competências para novas realizações.
O psicólogo russo-americano[1] Urie Bronfenbrenner debruçou-se também sobre a influência do meio no desenvolvimento humano. O autor criticou na sua Teoria dos Sistemas Ecológicos a forma como os estudos tradicionais excluíam as múltiplas influências exercidas sobre os sujeitos em estudo pelos contextos em que interagiam, propondo investigações conduzidas em contextos naturais (Martins & Szymanski, 2004). Bronfenbrenner apresentou quatro quadros ambientais que exercem influência sobre o desenvolvimento individual[2]:
- o microssistema: compreende os ambientes próximos do indivíduo onde ele se move habitualmente e onde estabelece relações interpessoais. A casa, a creche ou a escola fazem parte deste sistema.
- o mesossistema: refere-se ao conjunto dos ambientes que o indivíduo frequenta e que compõem a sua rede social.
- o exossistema: o indivíduo em desenvolvimento não é participante ativo mas recebe influências indiretamente. Por exemplo, o trabalho dos pais, os amigos deles, a escola do irmão…
- o macrossistema: contexto social, económico e cultural em que o indivíduo está inserido. (Alves, 2002).
Segundo Martins e Szymanski (2004, p. 65), ao analisar a sua própria abordagem, o autor reconheceu que ela se focava demasiado “…nos contextos de desenvolvimento, deixando a pessoa em desenvolvimento num segundo plano.”. Tendo trabalhado na reformulação da sua teoria, Bronfenbrenner considera agora a bidirecionalidade entre a pessoa e o ambiente em que ela atua:
Crianças influenciam os próprios ambientes onde se encontram quando iniciam uma atividade nova, por exemplo, ou quando começam a estabelecer algum tipo de vínculo com outras pessoas e, logo, são influenciadas ao mesmo tempo pelos que estão ao seu redor (Cf. Martins & Szymanski, 2004, p. 65).
Esse novo modelo, agora apelidado de bioecológico, apresenta algumas novidades relativamente ao modelo anterior. Para além da bidirecionalidade da relação pessoa-ambiente, ele também reforça a importância das características biopsicológicas do sujeito em desenvolvimento e apresenta o conceito de processos proximais referindo-se às formas específicas de interação entre os indivíduos e o ambiente, ao longo do tempo. Nesse sentido, é apresentado o modelo PPCT: Pessoa, Processo, Contexto e Tempo. Este modelo requer que os investigadores considerem as relações entre estes quatro conceitos-chave (Tudge, J., 2008) tendo aquelas de ser recíprocas e estendidas no tempo (Martins & Szymanski, 2004). Para além das pessoas, os processos proximais referem-se também às interações com objetos e símbolos (idem, 2004) os quais são também agentes de socialização e, portanto, potenciadores de desenvolvimento.
Os estudos realizados pelos autores apresentados, levam-nos a ponderar a influência dos diversos agentes de socialização, quer primária quer secundária, no desenvolvimento humano, o que nos remete para a relevância desses factores no início da vida.
Após a análise dos contextos do desenvolvimento humano, poderemos tentar perceber a relação existente entre o processo de socialização e o processo de vinculação que se inicia “…ainda durante o período de gestação, quando a mãe cria o primeiro vínculo ao seu bebé imaginário ainda antes do vínculo ao bebé real, após o nascimento deste.” (Fleming, 2005, p. 5).
Para Bowlby (Cf. Fleming, 2005), existem no bebé comportamentos inatos, como o choro ou o sorriso, que visam estabelecer ligações logo após o nascimento no sentido de obter proteção e assegurar a sobrevivência, respostas específicas da espécie humana, decorrentes da evolução da espécie resultante do processo de seleção natural defendido por Darwin[3]. Podemos dizer que, mal nasce e chora, o bebé está a iniciar o seu processo de socialização ao comunicar através do choro, na tentativa de obter uma resposta para as suas necessidades metabólicas que deixou de poder satisfazer automaticamente a partir do momento do nascimento (Santos & Farate, 2009).
Inicialmente considerou-se que as crianças apenas necessitavam da atenção do adulto para satisfação das suas necessidades fisiológicas (fome, sede, calor, frio…). A relação com a mãe era um benefício secundário, uma vez que a criança aprendia que ligada à mama que a alimentava estava uma pessoa, sendo a satisfação da fome o objetivo principal (Cf. nota de rodapé 3). Contudo, estudos na área da Etologia[4] revelaram que, nos animais, muitos comportamentos inatos visam assegurar a cooperação entre os congéneres, e assim a sobrevivência. Lorenz chamou imprinting ao comportamento que visa o estabelecimento de uma relação independentemente da satisfação de necessidades fisiológicas (ibidem). Na mesma linha, Harlow desenvolveu investigações com macacos que demonstraram a mesma necessidade de contacto físico e concluiu que o vínculo entre a cria e a mãe está mais relacionado com o contacto corporal que fornece o sentimento de segurança e proteção do que com a alimentação (ibidem). Spitz e Ainsworth, nas suas investigações, verificaram que essa necessidade se estendia aos seres humanos, ao constatarem as consequências que a ausência de relações privilegiadas com adultos fornecedores de proteção tinha nos grupos que estudaram (ibidem), nomeadamente, “…perturbações emocionais, comportamentais e desenvolvimentais graves.”(ibidem, p.18).
Segundo Gomes-Pedro (Cf. Oliveira & Cunha, 2007, p. 33) “…o determinismo biológico mais específico no condicionamento do comportamento é a relação.” A vinculação segura proposta por Ainsworth, na qual a criança manifesta sinais de angústia na ausência do progenitor mas imediatamente o procura quando ele regressa e se acalma (Cf. nota de rodapé 3), parece ser o tipo de vinculação mais desejável pois vai proporcionar à criança maiores competências para o relacionamento social (Cf. Oliveira & Cunha, 2007). Se a dinâmica das relações potencia o desenvolvimento (Oliveira & Cunha, 2007), facilmente se conclui que uma criança que tenha mais atenção na primeira infância terá maiores oportunidades de sobrevivência, crescimento e desenvolvimento (ibidem), sendo que “…o desenvolvimento na infância é determinante para todas as áreas da formação da pessoa: mental, física, emocional e social pelo que, promover melhor formação cognitiva nessa fase tem impacto decisivo no futuro do indivíduo.” (Oliveira & Cunha, 2007, p.35).
Podemos então concluir que, um processo de vinculação bem sucedido na primeira infância influencia decisivamente a capacidade das crianças de estabelecerem relações sociais propiciadoras de um desenvolvimento saudável e harmonioso.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
· Alves, P. (2002). Infância, tempo e atividades cotidianas de crianças em situação de rua: as contribuições da teoria dos sistemas ecológicos. Tese (Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento). Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Recuperado a 21/05/2011 em http://www.msmidia.com/ceprua/Espanhol/paola_doutorado.pdf
· Oliveira, M.C., & Cunha, M. I. (2007). Infância e Desenvolvimento. Cadernos de Estudo. Porto: ESE de Paula Frassinetti. nº 6. Disponibilizado on-line na UC de Psicologia do Desenvolvimento em http://www.moodle.univ-ab.pt/moodle/mod/resource/view.php?id=1185731. Recuperado em 14/04/2011
· Santos, V. & Farate, C. (2009). Impacto da heroinodependência materna no tipo de comportamento de vinculação e na adaptação escolar da criança. SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas. Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto. Recuperado a 22/05/2011 em
· Silva, I. (rev.) (2007). Redescobrir Vigotsky. Destacável Noesis nº 77. APEI - Associação de Profissionais de Educação de Infância. Editorial do Ministério da Educação. Disponibilizado on-line na UC de Psicologia do Desenvolvimento em http://www.moodle.univ-ab.pt/moodle/file.php/32511/Documentos_Tema_2/Destacavel_252077.pdf. Recuperado em 05/04/2011
· Tavares, J., Pereira, A., Gomes, A., Monteiro, S. & Gomes, A. (2007). Manual de Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem. Porto: Porto Editora.
· Texto 5, disponibilizado on-line na UC Psicologia do Desenvolvimento, em
http://www.moodle.univ-ab.pt/moodle/mod/resource/view.php?id=1185711. Recuperado em 14/04/2011
· Tudge, J. (2008) A teoria de Urie Bronfenbrenner: Uma teoria contextualista? Universidade da Carolina do Norte em Greensboro, EUA. Recuperado a 21/05/2011 em http://www.uncg.edu/hdf/facultystaff/Tudge/Tudge,%202008.pdf
[2] (Cf. Martins & Szymanski, 2004)
[3] Texto 5, disponibilizado on-line na UC Psicologia do Desenvolvimento, em
http://www.moodle.univ-ab.pt/moodle/mod/resource/view.php?id=1185711, recuperado em 14/04/2011
[4] Estudo do comportamento animal
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